sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Igreja do Livro Transformador

Eliane Brum - Época - 31/01/2011 
Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados. No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura.

Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado...).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula. E assim foi.

Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado... E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias... Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu... Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude...

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas - ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização...

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão...) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures...”

Comendo sonho e vivendo feijão

Leia na íntegra em:
http://www.blogdogaleno.com.br/texto_ler.php?id=9440&secao=1

0 comentários:

Postar um comentário

Deixe aqui sua opinião.